Por Bruno M. Giordano
Se o gerundismo e o queísmo são enfermidades para as quais temos clínicas especializadas, não há nenhuma para os sofredores crónicos do “voceísmo”: o uso excessivo do pronome degenerado você no lugar do sujeito oculto na segunda pessoa ou mesmo do intimista e bem brasileiro tu. Para este caso, os pobres adictos são largados à própria sorte, sem hipótese de assistência.
Tomemos o gerúndio. Ele pode e deve ser usado para expressar uma ação em curso ou uma ação simultânea a outra, ou para exprimir a idéia de progressão indefinida. Combinado com os auxiliares estar, andar, ir, vir, o gerúndio marca uma acção durativa, com aspectos diferenciados:
- Está havendo aulas.
- As escolas estão melhorando o ensino.
- A universidade está saindo da crise.
Já o gerundismo:
Gerundismo
O gerundismo (abuso do gerúndio) é fenómeno lingüístico relativamente recente no Brasil. Exemplos:
- Nós estaremos lhe enviando um fax com os detalhes. (Melhor: Nós lhe enviaremos…)
- Nós vamos estar lhe enviando um fax com os detalhes. (Melhor: Nós lhe enviaremos…)
Esta construção abusiva do gerúndio é muito utilizada nos serviços de atendimento ao cliente por telefone e telemarketing, e nesse caso pode se explicar por uma tradução apressada dos manuais que vêm do exterior.
Note que o gerúndio em inglês é feito pela adição do sufixo ing (eating, reading, walking) e que por terras anglófonas é demasiado seu uso, logo podemos concluir que há alguma influência provinda de tais sítios em traduções ou no ensino de inglês nas escolas.
Já o queísmo advém do uso excessivo do pronome relativo “Que”.
Por exemplo: “O repórter que gravou a matéria sobre o candidato eleito, que desagradou o público, também quer que haja recontagem dos votos”
Mas e o voceísmo?
Este exemplo foi retirado de um texto contido no Stood, acerca de vícios em linguagem. Mas ele próprio não está isento de outro vício silencioso… O grande elefante entremeado à sala, de quem não se ousa falar: O voceísmo.
Se alguma vez te falaram que o seu texto é bom e que você só precisa eliminar um pouco do “queísmo”, você está na matéria certa. Hoje, a prof. Priscilla vai ensinar como fazemos para evitar essa repetição.
Sim! O voceismo. Este pronome, o você, refere-se a segunda pessoa do discurso. Mas sua evolução na língua portuguesa surgiu de uma degeneração sucessiva de pronomes:
No século XIX, sendo os ministros de Estado portugueses e brasileiros, os grandes, os bispos, os conselheiros, e a fidalguia lusófona em geral tratados pelo título que lhes era reservado de excelência (vossa excelência, sua excelência), o alargado e diminuído tratamento de vossa mercê, contraído no seu uso coloquial em vossemecê, e vosmecê, já estava tão generalizado na Lusofonia que Camilo Castelo Branco ironiza a respeito, escrevendo de modo risonho que o seu merceeiro se ofendera por ele corajosamente o ter tratado por você. Segundo Camilo, o lojista quereria ser tratado por senhoria (vossa senhoria, sua senhoria), que era o tratamento intermédio então ainda reservado a toda a nobreza distinta em geral, sem foros de fidalguia principal; ou seja, aos escalões médios e inferiores da nobreza, em seguida, a mesma passou a se chamar excelentíssima (excelentíssimo senhor), abandonando o título de senhoria (vossa senhoria, ilustríssimo senhor) aos burgueses e ao povo.
Então, se o tratamento vossa mercê já era pedante à época, por evocar uma subserviência mesquinha, imagina quando chegou ao século XX reformulado como você! Contudo, o uso do você, per si, não é um grande problema, pois está consagrado pela prática lingüística. O entrave está exatamente porque a gente esqueceu de conjugar com a segunda pessoa, ou melhor, esquecemo-nos de usar o sujeito oculto. Vejam estes exemplos maravilhosos, extraídos do Blog de Egídio Campos:
— Bem, aaah…, você tem que dar mais educação aaah… para o povo, aaah…, não basta você apenas aaah… você reforçar o aparelhamento de segurança pública, aaah…, porque senão você cai num aaah…, círculo vicioso aaah…, e aí, aaah…, você permanece com os problemas, você continua com eles aaah…, só que aaah… mais agravados. Você sabe, né, aaah… educação é a base de tudo…
Pergunto-me se quem resolverá os problemas é o repórter ou os políticos, que à nada servem?
O você está assumindo o papel do governo, de terceiras pessoas, doutras entidades. Você está-se apropriando dum limiar de alienação plena.
Creio que a maioria das pessoas já notou o voceísmo — essa síndrome do você. É o uso indiscriminado do você em qualquer construção de comunicação falada, numa usurpação do direito natural quer dos adequados pronomes pessoais, quer da forma impessoal. É um tal de você isso, você aquilo… Sem mais nem quê. Interpelado, o falante sai logo com essa pérola: “se você cuidar disso, se você fizer aquilo…”. O você está assumindo o papel do governo, de terceiras pessoas, doutras entidades. Você está-se apropriando dum limiar de alienação plena.[…]
Há, com efeito, outra faceta do voceísmo. Ao usar impropriamente o você, quem fala exime-se subtilmente da responsabilidade da coisa. Afinal — acudirá consigo mesmo — eu não disse “eu”, disse você… E, quer se queira, quer não, estará, em princípio, com a razão. Não fui eu quem fiz ou deixei de fazer. Foi você.
Engana-se, contudo, quem pensa que o voceísmo é dependência psicológica de iletrados do povo, das gentes pobres e faveladas do Brasil. É sintoma de adicção dos mais abastados: Basta ler as informações de qualquer software para computador ou smartphone (exemplo acima), traduzido para o português brasileiro, para encontrá-lo lá, a soldo farto. Ou que leias as legendas de qualquer filme: dos originais aos pirateados.
–Você não vai acreditar.
-Acho que você pode
precisar disso.
-Vamos trazer para casa
um irmãozinho pra você.
Extraído a uma Legenda de The Prodigy, 2019
Qualquer pronome- ti, te, si, tu- poderia ser utilizado para os casos acima, ou sua simples ausência, mas o fenómeno do voceismo destituiu-nos de qualquer capacidade em conjugar verbos com outra estrutura que não seja o você, a funcionar como uma tradução universal do You. Triste, também, é se verificar que estas construções pobres são utilizadas por alguns professores de português em sala de aula. Então a substância já é injetada aos miúdos em tenra idade, sem muito poder de escolha por parte dos alunos.
Por coincidência, nossos patrícios de Portugal quase não usam você. Pudera, se têm 6 pronomes pessoais do caso reto e a possibilidade de utilizar o sujeito oculto e os pronomes oblíquos, porquê usariam o você em demasia? Isto lá é coisa das elites brasileiras que abundam nas universidades. O caso interessante é que, em Portugal, caso refira-se a uma pessoa com o pronome você, não raramente te corrigem: “Você é linguagem de estrebaria”. Lá utilizam até o si como pronome oblíquo à segunda pessoa: “Esta prenda é para si”, “Fizemos isto especialmente para si” ou, se forem mais íntimos, “Este presente é para ti”, “Fizemos isto para ti” etc.
Veja exemplos de construções sem voceísmo. São mais simples e elegantes.
- Com voceismo:
“Você fez o trabalho da escola? você sabe que se você não fizer, você não jogará video-game”. - Sem voceismo:
“Fez o trabalho da escola? Sabe que se não o fizer, não jogará video-game”.
Fontes:
- https://falabonito.wordpress.com/2007/01/22/gerundio-e-gerundismo/
- https://www.stoodi.com.br/blog/2017/04/28/como-eu-faco-para-evitar-o-queismo-na-hora-de-escrever-redacao/
- GONÇALVES, Clézio Roberto. De vossa mercê a cê: caminhos, percursos e trilhas. Cadernos do CNLF,
- http://voceismo.blogspot.com/2011/04/voceismo.html